Por Austin Andrade
Essa semana vamos prosseguir com o debate sobre militarismo. Ao contrário que muitos imaginam, esse é um tema que deve ser abordado, compreendido e discutido amplamente com a sociedade. A reforma estrutural tem que abranger várias áreas, e a contextualização do militarismo no Brasil é um dos temas que seria bom que fosse abordado.
Na última coluna escrevi sobre o conceito de “corpos dóceis”, empregado por Michel Foucault, ou seja… O militarismo como é, tira a humanidade do individuo, ele passa a ser uma máquina desprovida de raciocínio, não existe argumentação, pensamento, só existe o “fazer”, o “servir”, o “obedecer”. Para Foucault, essa condição tira a humanidade do ser humano. Suas experiências e suas perspectivas simplesmente não são levadas em conta.
Olhando a composição do quadro policial em outros países, podemos perceber que a existência de uma polícia militar é extremamente rara nos dias de hoje. Não por acaso a própria ONU já solicitou a extinção da polícia militar do Brasil no ano de 2012. Se formos considerar os estudos de um dos maiores gênios que a humanidade conheceu, não é difícil aceitarmos que os policiais que trabalham como militares, seriam ainda mais úteis se estivessem numa corporação em que fossem valorizados como seres humanos inteligentes, pensantes. Que pudessem se organizar em sindicatos para cobrar melhores condições de trabalho, ou que somente pudessem se fazer ouvir.
Nossa Polícia Militar, como é constituída hoje, acaba sendo uma distorção de modelos de polícia ao redor do mundo, um monstrengo criado há décadas, com alma envelhecida como se tivesse milênios, e que não satisfaz as exigências do mundo contemporâneo. Muitos países possuem as chamadas “gendarmarias”. Entre as corporações estrangeiras, podemos citar a Gendarmerie Nationale na França, os Carabinieri na Itália, a Guardia Civil na Espanha e a Guarda Nacional Republicana em Portugal. Uma curiosidade, é que essas policias são nacionais, e não estaduais, como aqui. As gendarmarias europeias não trabalham apenas na repressão, ou intimidação, como ocorre com a Polícia Militar brasileira, ela também atua na investigação. Os policiais acabam se tornando mais completos, o que lhes possibilita mais facilidades de ascensão profissional.
A Constituição Federal do nosso país estabelece uma divisão curiosa e custosa, a divisão entre policia civil e militar. Essa divisão onera o estado, que precisa manter duas instituições custosas, além de provocar uma rivalidade extremamente desnecessária entre pessoas que teoricamente seguem a mesma carreira.
O jovem que deseja ingressar na polícia precisa escolher antecipadamente se deseja seguir a carreira de policial ostensivo (militar) ou investigativo (civil), criando uma divisão no que deveria ser a mesma carreira.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, a carreira de policial possui a chamada “ciclo completo”, ou seja, começa sua carreira nas ruas, com um aparato mais ostensivo, com uniforme e dentro de uma viatura. Na medida em que o profissional for ascendendo, começa a entrar no setor de investigação, momento em que deixará uniforme e viatura de lado e passará atuar no setor de inteligência. Esse ciclo ajuda com que sua experiência nas ruas seja levada em conta, é como um complemento unindo experiência corporal com atitudes cerebrais, de inteligência.
No modelo do Brasil, isso é impossível de acontecer. Em nosso país os policiais militares atuarão nas ruas até que seus corpos não mais correspondam. Em seguida farão alguns trabalhos administrativos, de almoxarifado. Na verdade, seria transferido para um canto qualquer esperando a aposentadoria chegar. Enquanto isso os policiais que ingressam por concurso na esfera civil, muitas vezes vão para a inteligência, sem ao menos terem qualquer tipo de experiência com a investigação. Enquanto os policiais militares prestes a se aposentar, muitas vezes se tornam sub utilizados justamente no auge de sua experiência profissional.
Eu particularmente penso que os policiais militares tem que ser valorizados como seres humanos na sua totalidade. Suas experiências em anos de serviço não podem ser desperdiçadas. Sua formação profissional não pode ser desprovida de fatores humanos, sociológicos e filosóficos. A historiografia mostra que o verdadeiro combate ao crime tem pouca eficiência em longo prazo com a repressão pura, descabida e irracional. Enquanto não encontrarmos maneiras de nos aprofundarmos nessa discussão, nada mudará. Continuaremos sendo campeões em morte de civis em confronto com a polícia. Além de campeões em policiais mortos em confronto com bandidos, em situações em que os PMs são jogados as feras por ordens de uma hierarquia que pensa estar em estado de guerra o tempo todo.
Semana que vem veremos como a preparação militarista, em que os policiais têm sua humanidade confiscada pelo estado, tem contribuído para o aumento da violência e intolerância. Veremos como essa situação provoca um maniqueísmo. Que faz com que grande parte da população que vive nas periferias veja os policiais como potenciais inimigos, e não como um representante do estado que está ali para melhorar a segurança de todos. Que todos e todas tenham uma ótima semana. Até a próxima segunda.
Rogério Tonet
23 de março de 2015 às 9:52
Ótimo texto Austin.
O conceito de “corpos dóceis” do Foucalt me é muito caro… a ideia de condicionamento, conformação, seja do corpo ou da mente é parte do “sistema”… :)
O corpo (ou mente) exercitado tem sua utilidade aumentada… no tempo das máquinas fordistas era o músculo que – pelos movimentos repetitivos – conformavam o sujeito à máquina e, aumentando os músculos, aumentavam a força e a destreza do sujeito…
Hoje, o utilitarismo aplicado aos sujeitos (ou “assujeitados”) ocorre em nível abstrato… são ideias que, introjetadas em suas mentes, os tornam mais úteis aos objetivos dos que os comandam.
Rogério Tonet
Paulo Braga
23 de março de 2015 às 10:09
Eu adoro esse blog!!! Mais um texto ótimo.