“Quando alimentei os pobres me chamaram de santo; mas quando perguntei por que há gente pobre me chamaram de comunista”
(Dom Helder Câmara)
Em 1979, o então arcebispo de El Salvador, Monsenhor Oscar Romero, escreveu uma carta ao Papa João Paulo II. Nela, o sacerdote salvadorenho denunciava as graves violações aos direitos humanos ocorridas em El Salvador, onde o extermínio de camponeses e clérigos havia se tornado rotina. O pequeno país centro americano havia acabado de sofrer um golpe de Estado, instaurando uma violenta ditadura que em apenas poucos meses produziu a morte de mais de mil cidadãos salvadorenhos. Como resposta, nos anos seguintes, surgiram movimentos armados (guerrilhas) de esquerda para combater a ditadura salvadorenha, levando o país a uma violenta guerra civil que, entre 1980 a 1992 produziria mais de 150 mil mortos. Quando escreveu o apelo ao Papa, os movimentos de resistência de esquerda ainda não haviam se formado. A violência era exclusividade da extrema-direita, onde grupos paramilitares agiam dia e noite acobertados pela ditadura. Romero pediu ao Sumo-Pontífice que interviesse a favor dos pobres e trabalhadores, maiores vítimas da violência inaugurada pela extrema direita salvadorenha, mas recebeu do Papa uma resposta evasiva e displicente: “A Igreja precisa trabalhar mais estreitamente com o governo”.
A ditadura salvadorenha e a violenta guerra civil que ela gerou foi apenas parte da triste realidade que se abateu sobre a América Latina na segunda metade do século XX. Naquela região, as ditaduras caracterizavam-se por serem regimes personalistas, longevos e abertamente sanguinários, onde um proprietário rural ou chefe militar se apossava do poder de forma violenta, e nele se perpetuava através das gerações, alimentando seu poder através do roubo e da usurpação do poder, da corrupção, mas principalmente do uso de violência extrema contra opositores. Também, assentava seu poder em alianças espúrias e convenientes com os Estados Unidos, que era quem na verdade instituía (e mantinha) essas ditaduras fantoches para salvaguardar seus interesses econômicos e de suas empresas (como a United Fruit). Esses ditadores acumularam riquezas incalculáveis para si e para seu clã, governando países inteiros como se fossem seus pequenos feudos particulares.
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A maioria dos governos que tomaram o poder e o exerceram de forma ditatorial na América Latina no decorrer do século XX, o fizeram patrocinados pelos EUA. Golpes, contragolpes e ditaduras se tornaram uma rotina enfadonha na história da América Central já desde as primeiras décadas do século XX. Mas no final da década de 1950, a lógica dessas ditaduras se modificou para servir aos novos interesses da geopolítica norte-americana para a América Latina. Desde o fim do período colonial, no início do século XIX, os Estados Unidos consideravam a América Latina como seu território exclusivo de influência hegemônica (“quintal americano”). Essa lógica, embora fizesse referência a toda a América Latina, foi sentida de forma precoce sobretudo na América Central e Caribe, já que ao sul do continente (América do Sul) outras potências europeias (sobretudo França e Inglaterra) também disputavam os espaços de hegemonia abertos pelo fim do domínio português e espanhol. Nesse contexto, desde a década de 1820 já surgiram nos EUA doutrinas imperialistas, como a “Doutrina Monroe”, a doutrina do “Big Stick” e a doutrina do “Destino Manifesto”.
Ao fim da 2° Guerra Mundial (1939-45), eclode o conflito entre EUA e URSS, e tem inicio a Guerra Fria (Capitalismo x Comunismo). Em 1959, triunfa a revolução cubana, que representou uma derrota importante ao imperialismo estadounidense em sua hegemonia absoluta sobre o Caribe. Como resposta, os EUA forçaram todos os demais países do continente a forjar suas DSNs (Doutrina de Segurança Nacional), cujo requisito passava por militarizar a América Latina, controlar a população pobre, e extirpar impiedosamente qualquer foco de resistência social. Com alguma razão, os EUA viam a América Latina como um celeiro de novos guerrilheiros. As DSNs foram introduzidas sob o mote do anticomunismo paranoico e doentio plantado pelas elites detentoras do poder. Ironicamente, as violentas ditaduras ali surgidas se justificavam pela defesa dos valores tradicionais cristãos, contra o comunismo. Sem nenhuma surpresa, a Igreja Católica apoiou a emergência destes regimes ditatoriais, promovendo a paranoica campanha anticomunista entre seus fiéis, mobilizando a população em massa para desestabilizar governos democráticos e forçar golpes de Estado (como a nefasta “Marcha com Deus pela Familia” no Brasil, dias antes do golpe de 1964), e legitimando ditaduras e abençoando ditadores.
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Como em todos os momentos cruciais na história do continente latino-americano, a Igreja Católica sempre foi uma aliada de primeira hora em favor dos opressores. Desde o extermínio iniciado em 1492, quando a monarquia espanhola reduziu sociedades indígenas inteiras ao estado de servidão, passando pelas lutas de independência e descolonização do século XIX, lutas sociais e anti-oligárquicas do século XX e, finalmente, a instauração de ditaduras civis-militares no continente na segunda metade do século XX, a Igreja, via de regra, sempre se posicionou a favor dos donos do poder, desincentivando e repreendendo a luta dos oprimidos contra seus opressores, e ainda legitimando massacres promovidos pelas elites contra seu povo. No contexto dos golpes ocorridos entre os anos 1960 e 70, não foi diferente. Em todos estes momentos, a Igreja fez vista grossa a ditaduras que promoviam massacres, genocídios, estupro e outras formas de violência física e simbólica. As denuncias feitas pelo frei Bartolomé Las Casas no inicio do século XVI já demonstravam a hipocrisia de um catolicismo conveniente, onde as elites empunhavam a cruz de Cristo enquanto massacravam indígenas e negros. Neste continente, Igreja e Poder se tornaram sinônimos; e ambos, símbolos de violência, corrupção, hipocrisia e extermínio.
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Foi apenas nos anos 1960, quando alguns religiosos decidiram virar essa página, que o papel da Igreja começou a mudar radicalmente. Reavaliando e rejeitando essa postura da Igreja em apoiar governos e ditadores assassinos, padres e clérigos passaram a agir sob o mote da “Opção preferencial pelos pobres”, através do qual reinterpretaram os evangelhos e a própria figura de Cristo, dando menos ênfase à Igreja romana e suas instituições de poder, e mais ênfase na figura do Cristo em si – o original, camponês, filho de mãe solteira e de um carpinteiro pobre, que nasceu perseguido pelo poder e viveu perambulando na companhia de mendigos, prostitutas, cegos e desvalidos; e que, como muitos daqueles pobres e injustiçados com os quais andava, também morreu injustiçado, pendurado numa cruz, condenado pelo poder romano. Em resumo, um Cristo pobre, para os pobres; um Cristo como ele verdadeiramente foi, e não como o catolicismo oficial do Império Romano o moldou.
É sob essa lógica que devemos entender e interpretar o símbolo da cruz entregue pelo presidente boliviano Evo Morales ao Papa Francisco, na semana passada; uma cruz misturada à foice e ao martelo – instrumentos de trabalho, símbolo dos trabalhadores. Ao contrário daquilo que disseram os setores mais conservadores (inclusive do próprio Vaticano), a cruz talhada sobre a foice e o martelo não foi uma “travessura”, uma traquinagem, uma “piada” para sabotar e profanar um símbolo cristão, mas um artefato que lembra ao Vaticano, e aos donos deste continente, as origens humildes do fundador do cristianismo. O objeto incomodou tanto porque ali, a cruz alude ao trabalho e a libertação. Isso num continente onde, historicamente, a cruz sempre foi um símbolo de morte, empunhada por ricos e arrogantes fazendeiros, militares e empresários enquanto estes matavam índios, negros e pobres.
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O símbolo da cruz trançada sobre o martelo e a foice não foi obra de uma mente “pervertida” pelo “comunismo”, mas um objeto feito a partir da inspiração do padre jesuíta espanhol Luiz Espinal, profundo conhecedor da miséria do continente latino americano, e que foi morto a tiros pela ditadura boliviana em 1980.
Espinal também havia feito a opção preferencial pelos pobres da América Latina.
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Na El Salvador do arcebispo Oscar Romero, freiras que também haviam feito opção preferencial pelos pobres saiam para distribuir comida e roupas em comunidades carentes, e desapareciam, reaparecendo dias depois com o corpo todo desfigurado pela tortura, com marcas de espancamento, queimadura e violência sexual, assassinadas com tiros na nuca e na boca.
Como nos dias atuais, a paranoia anticomunista daqueles tempos ajudou a transformar qualquer um que se importasse com o próximo em um potencial “agente secreto” soviético ou cubano; e grupos paramilitares, imbuídos pelo argumento da Guerra Fria, na defesa dos “verdadeiros valores cristãos” e inspirados pelas DSNs, faziam o trabalho sujo de exterminar quem quer que fosse considerado inimigo.
Apesar de ter realizado um importante trabalho social em comunidades pobres de El Salvador, antes de se tornar arcebispo, Oscar Romero era considerado um religioso de perfil conservador. Nessa condição, frequentava salões e palácios onde era cotejado por generais, governos, ministros e fazendeiros. Sua nomeação para arcebispo de El Salvador em 1977 foi uma tentativa de estancar o engajamento de religiosos em campanhas contra as ditaduras e a direita conservadora e golpista no pais, e em favor dos mais pobres. Para os donos do poder, Romero não apenas não representava qualquer perigo ou ameaça, como também tinha amplo trabalho pastoral e, consequentemente, influência social suficiente para diminuir a pressão interna por reformas sociais no interior da Igreja e em seu corpo eclesial. Oscar Romero era visto como um antídoto conservador contra a mobilização de padres e religiosos em favor de causas sociais.
A resistência civil à violenta ditadura salvadorenha precipitou mudanças significativas no perfil do arcebispo Oscar Romero: inúmeros padres, freiras e amigos pessoais que ele conhecia muito bem, e de cujo trabalho apostólico e social Romero admirava, começaram a aparecer mortos e desfigurados pela tortura perpetrada por grupos paramilitares que agiam a favor do governo ditatorial. Usando sua influência, Romero chegou a resgatar alguns deles com vida, em câmaras de tortura clandestinas e em instalações militares oficiais. Até então, Romero acreditava (como muitos até hoje acreditam, inclusive no Brasil) que existia uma guerra, e que a ditadura só matava aqueles que decidiam “radicalizar”, pegar em armas e partir para ações violentas. Mas Romero conhecia a índole pacifista e o trabalho abnegado daqueles que também encontraram a morte em becos escuros e em câmaras de tortura, e começou a perceber que algumas coisas estavam sendo contadas apenas pela metade. Procurou o governo, mas foi alertado para afastar-se de “elementos subversivos”; procurou os chefes militares, mas foi ameaçado de morte; por fim, procurou o Papa João Paulo II, que se limitou a responder: “Afaste-se do comunismo!”, antes de virar-lhes as costas.
Romero foi assassinado com um tiro de fuzil no peito no dia 24 de março de 1980, enquanto ministrava uma missa para os pobres, numa capela de um hospital de câncer, na capital de El Salvador, San Salvador.
Oscar Romero jamais pegou em armas.
Oscar Romero jamais esteve em um campo de treinamento em Cuba ou em Moscou.
Oscar Romero jamais defendeu a opção pela luta armada.
Oscar Romero jamais participou de ações como sequestro ou assalto a bancos.
Seu único crime foi ter denunciado a violência contra civis em El Salvador, promovida por ditadores apoiados pelos EUA.
Não se pode dizer que o Papa João Paulo II foi responsável direto por sua morte; mas sem dúvida, a indiferença e omissão do Vaticano no tocante aos crimes cometidos por ditaduras “cristãs” na América Latina, deu carta branca aos torturadores e executores de Romero, assim como deram permissão para os assassinos do padre argentino Carlos Mujica, do padre colombiano Camilo Torres, dos torturadores de Frei Tito (Brasil), e de tantos outros religiosos que se engajaram na transformação social de um continente pobre e miserável do qual eram profundos conhecedores.
O gesto de Francisco de receber a cruz trançada na foice e martelo parece referendar a memória de lutadores sociais que pagaram com suas vidas a tentativa de mudar a realidade social deste continente. Isso pode ajudar a Igreja Católica a reescrever sua história no continente; história esta que acumula massacres, traições, fogueiras, extermínios e muito sangue, mas que agora pode também renovar os ventos de esperança e de dias melhores para a população pobre sofrida deste continente; um alento de justiça e paz para tantos desvalidos e injustiçados; estes em cuja companhia, com certeza, Jesus Cristo gostaria de estar.