Engana-se quem acha que o nazismo foi produzido exclusivamente com base na retórica e na bela oratória atribuída a Adolph Hitler, que da noite para o dia teria conseguido convencer a Alemanha a aceitar suas teses racistas e seus conceitos militaristas e xenófobos de civilização. Essa triste e desprezível experiência ocorreu em nossa civilização moderna, à luz do dia, de forma escalonada, gradual, mas consentida, pois apoiada (e esperada) pela imensa maioria da população alemã. O nazismo foi a confluência dos anseios de um empresariado assustado com a possibilidade do avanço do comunismo sobre suas fronteiras; de uma classe média assustada pela forte propaganda anti-comunista realizada através da imprensa do país; e de uma classe trabalhadora que acabou embarcando na ditadura hitleriana por estar convencida de que a culpa dos problemas alemães (desemprego, inflação alta, carestia, anarquia política) era dos estrangeiros – russos, polacos, judeus, franceses, etc.
Hitler era um cara sem graça. Quando jovem, tinha ideais extremistas de nacionalismo e perspectiva política reacionária (à semelhança de Jair Bolsonaro e Kim Kataguiri, nos dias atuais). Com a derrota alemã na 1° Guerra, o então frustrado e ex-combatente alemão trabalhou o quanto pôde para desestabilizar os governos que assumiram o poder após 1918 e assinaram os acordos vergonhosos que colocaram a Alemanha de joelhos frente as demais potências europeias. Eram anos de profunda anarquia política, e do outro lado da fronteira, na Russia, a revolução socialista já havia se consolidado como uma alternativa viável a um cambaleante sistema capitalista. Em 1924, Hitler tentou repetir o gesto que consagrou Benito Mussolini na Itália, e (como Kim Kataguiri fez, e como farão aqueles que promovem marchas como a do próximo domingo, 16 de agosto), na Alemanha, tentou promover uma grande marcha. Hitler esperava uma grande adesão popular, e assim poderia dar um golpe de misericórdia no moribundo sistema político alemão. A tentativa de golpe foi um fracasso total, e Hitler foi preso com a meia dúzia de gatos pingados que o acompanharam. Por esse gesto, amargou alguns meses na cadeia, mas a marcha serviu para que Hitler crescesse e aparecesse, sendo mesmo saudado por muitos como “herói” e vítima.
Na cadeia, escreveu seu famoso livro “Mein Kampf” (Minha Luta), onde já expunha todo seu ódio aos estrangeiros, e adotando uma perspectiva política calcada no terreno da extrema direita alemã, aliava anticomunismo paranoico e antissemitismo doentio. Anistiado e solto, abandonou a estratégia militante e decidiu chegar ao poder através de alianças com o empresariado alemão, apresentando sua ideologia do “nacional-socialismo” como uma solução eficiente no terreno do capitalismo, para evitar o avanço do comunismo. Hitler foi financiado e apoiado por grandes empresas alemãs. Uma vez instaurado no poder, começou a combater o comunismo articulando forte propaganda com métodos violentos. Nos anos em que ainda era golpista, o partido nanico de Hitler era conhecido por abrigar militantes agressivos e de mentalidades extremistas. As SSs, tropa de choque do nazismo, se especializaram em frequentar comícios operários para espancar militantes e dirigentes sindicais de esquerda, incendiando diretórios e materiais de propaganda esquerdista, e aterrorizando grupos revolucionários. Antes de criar os campos de concentração, Hitler e seus correligionários já haviam feito laboratório nas próprias ruas. Os campos de concentração apenas consolidariam o método político de Hitler testado primeiro contra militantes de esquerda, onde o ódio visceral aqueles que ele tinha como “inimigos” culminava com seu extermínio físico.
Após chegar ao poder em 1933, Hitler ampliou esse método político, aparelhando as SSs, agora transformadas em corpos militares oficiais do Estado. Com elas, fazia valer a ideia de que o uso da força bruta (uso de violência extrema) contra opositores era o melhor antídoto para a preservação da ordem e dos bons costumes da sociedade alemã. Perplexa e amedrontada pela propaganda anticomunista, parte da sociedade alemã apoiou o nazismo; e quem se opôs, acabou gradativamente sendo eliminado, até que não restasse mais nenhuma oposição. (os campos de concentração foram inicialmente criados para a internação de prisioneiros políticos do nazismo, sendo apenas ao final da guerra também utilizados para dar vazão às políticas antissemitas do nazismo).
Hitler não fez o nazismo sozinho: contou com a cumplicidade de uma classe média assustada com a paranoia do comunismo; um empresariado interessado na manutenção do seu Status Quo; e de trabalhadores, esperançosos com a promessa de que as reformas socialistas viriam sem a necessidade de uma revolução (como ocorrera na Russia). Para as elites e para a classe média, o nazismo era considerado um “mal menor” frente a possibilidade do comunismo, e várias empresas também lucraram com Hitler. Para os trabalhadores, era a esperança de dias melhores sem o ônus da luta de classes. Estavam todos enganados.
A pergunta parece clichê, mas é pertinente: a quem, afinal, devemos atribuir a responsabilidade sobre o nazismo?
Hoje, em pleno ano de 2015, pululam pelas redes sociais brasileiras a mesma propaganda anticomunista que levou a classe média a alimentar suas paranoias e apoiar o nazismo como um “mal menor”.
Todos os dias, em tom apocalíptico, nos anunciam que o “golpe comunista” está próximo.
Acreditar neste tipo de besteira pode apenas parecer algo inofensivo, típico de quem fugiu das aulas de História e insiste em confundir a pauta LGBT como parte do comunismo, e acha que feminismo é machismo às avessas.
Porém, este tipo de “medo” paranoico realimentado cotidianamente pelas redes sociais e por formadores de opinião que escrevem em grandes veículos de comunicação do país, pode produzir resultados muito mais catastróficos e sérios, do que simplesmente um anacronismo histórico e confusões conceituais.
Defender qualquer pauta construída no terreno progressista (como o aborto, o casamento gay, a descriminalização das drogas, a manutenção da menoridade penal, etc) é correr o risco de ser taxado de “comunista”. Assim, essa paranóia anticomunista repaginada para abranger também as lutas sociais das minorias progressistas dos dias atuais, permite transformar imigrantes cubanos e haitianos em “agentes infiltrados” e “guerrilheiros a serviço do golpe comunista”. Quando o tal “golpe” não se confirma, o estrago já foi feito: a xenofobia, o ódio aos estrangeiros, o sentimento de que precisamos expulsá-los ou intimidá-los para que saiam deste país e voltem para seus lugares de origem.
Evidentemente, trata-se de uma xenofobia seletiva, que abrange apenas aqueles imigrantes vindos de países pobres. Italianos que vem ao país fazer turismo sexual ainda são bem vindos. Norte-americanos que buscam a exploração sexual infantil é saudado com tapete vermelho. Alemães e japoneses que praticam a biopirataria são nossos convidados de honra. Mas, e os bolivianos? E os haitianos? E os imigrantes que chegam ao país fugindo de guerras e perseguições religiosas na África e no Oriente Médio?
Naturalmente, estes não são bem vindos por aqui.
A xenofobia foi um traço marcante do nazismo. Impossível não recordarmos dele quando observamos a escalada da violência contra setores específicos da sociedade, especialmente imigrantes, e também como boa parte da imprensa e de setores conservadores tratam e banalizam tais questões. Para estes, o fato de haitianos serem espancados de forma covarde e sem motivo algum, constitui uma resposta natural à “crise”; sentimento este potencializado pelos próprios meios de comunicação; violência insana que vem a reboque de um discurso anacrônico que alia anticomunismo, xenofobia e a volta a um passado supostamente idílico e perfeito, onde não existia nenhuma crise, inflação ou desemprego. Com efeito, é cada vez mais comum encontrarmos grupos se esforçando para produzir teses revisionistas que tentam reabilitar a terrível experiência nazista, e outras experiências similares (como a ditadura militar brasileira), tratando-os como um “mal necessário”, mas “eficiente”, e onde supostamente todos eram mais felizes e a pobreza inexistia.
Hoje, um colunista influente da maior revista do país (Veja) se sente à vontade para escrever que a solução para os problemas sociais do país não está na construção de escolas, e sim de presídios; hoje, um dos ícones políticos da extrema direita se sente livre para subir à tribuna do Congresso para defender torturadores e estupradores que agiram sob a égide do Estado durante a ditadura militar brasileira (1964-85); hoje, uma senhora se sente livre e impune ao recusar seguir viagem num ônibus onde estavam indígenas, por considerá-los inferiores; hoje, grupos auto-intitulados “nacionalistas” já acham natural espancar e esfaquear imigrantes haitianos, sob a acusação de que estes estão roubando os empregos do país; hoje, grupos clandestinos já repetem experiências terroristas como a intimidação e o ataque a bombas à sede de um partido político historicamente identificado com a esquerda e com os movimentos sociais. Essas manifestações me causam calafrios.
É impossível não pensarmos que, por aqui, é bem provável que os ovos da serpente nazista já tenham quebrado sua casca, e suas primeiras criaturas já estejam andando por aí. Infelizmente.
mâe de aluno
16 de agosto de 2015 às 18:17
Professor Emílio Gonzalez, mais uma vez um artigo de extrema importância. Como sempre o senhor brilhantemente aprofunda a reflexão. Porém, dessa vez, confesso fiquei amedrontada. Professor, não havia me dado conta da gravidade desse comportamento que a sociedade vem apresentando. O mais assustador é que, grande parte dessas pessoas que manifestam essa xenofobia desacerbada não tem consciência da gravidade disso. Nossa sociedade esta controlada pela mídia que é controlada por uma minoria de déspotas que condiciona e aliena a população. Já vimos isso acontecer várias vezes na história da humanidade, contudo, ainda não aprendemos com os exemplos dos erros do passado. Será que um dia a sociedade vai transcender essa condição e alcançar um nível superior, o de um SER HUMANO?
Marcos Pinheiro Ataide
17 de agosto de 2015 às 16:05
Caro professor,
como é bom poder ver a história contada de forma que a nossa racionalidade e inteligência não seja subjugada ou subestimada de maneira agressiva.
Parabéns!