Há exato um ano, dorme numa gaveta do STF (Supremo Tribunal Federal) aquela que poderia ser considerado uma das principais armas para neutralizar a corrupção do sistema político eleitoral brasileiro. O nome do coveiro a sepultar, por hora,as esperanças de dias melhores éGilmar Mendes.
Mendes é um dos 11 ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), que desde 2013 julga aADIN 4.650 (Ação Direta de Inconstitucionalidade), que altera a Lei 9.504/1997. Trocando em miúdos, a ADIN 4.650 proíbe o financiamento privado de pessoas jurídicas (empresas) a campanhaspolíticas.
A votação dessa matéria já está bem avançada, e a tendência é que seja aprovada. Isto é, quando Gilmar Mendes desocupar o banheiro e deixar a discussão fluir como deve.
Não fosse a picardia do ministro Mendes, escândalos como aqueles revelados pela operação Lava-Jato já estariam com seus dias contados.
Financiamento privado de campanha: corrupção à vista!
Vamos aos fatos.
A princípio, cumpre esclarecer que doações para candidatos em campanha política não são imorais, e nem ilegais. Seriam até aceitáveis num determinado contexto. Numa ocasião, no início dos anos 2000, um professor e amigo que conhecíamos de longa data resolveu se candidatar a vereador, encampando a pauta da eco-sustentabilidade. Seu partido (à época, o PV) dispunha de poucos recursos para amparar seus candidatos, e boa parte de sua campanha foi feita em carreatas… e bicicleta! (Sim, o ciclismo era outra bandeira, e as carreatas eram intencionais, embora também fosse consequência dos poucos recursos que ele dispunha). No demais, sua campanha se fez com base em doações de pessoas comuns, profissionais liberais, funcionários públicos e pequenos comerciantes que conheciam sua biografia e passado, e principalmente, acreditavam em suas bandeiras de luta.
Dispor de seus próprios recursos para ajudar a eleger alguém em quem se acredita é algo fantástico. Daí reside a lógica da engrenagem solidária e da identificação entre o eleitor e seu representante nas câmaras legislativas e no poder executivo.
Porém, o que geralmente acontece é que, uma vez vencida a eleição, muitos “colaboradores” de campanha correm em direção ao candidato eleito para “cobrar a conta” do auxílio prestado. As doações – de campanhas passadas, mas também as que virão em campanhas futuras – acabam sendo usadas como moeda de troca na busca por privilégios, que podem vir em forma de contratos exclusivos e/ou superfaturados, ou em forma de melhorias e obras que ajudem a valorizar minhas propriedades, por exemplo.
O raciocínio do mecanismo é simples: eu pago para te eleger, e você trabalha para me favorecer. Essa grande engrenagem que cria e perpetua a corrupção brasileira está incrustada no sistema político brasileiro não porque as pessoas (eleitores e candidatos) sejam, a princípio, corruptos por natureza; mas porque, conforme expressa numa frase tornada célebre por um personagem (policial) corrupto do filme Tropa de Elite 1, “Quem quer rir, tem que fazer rir” (uma metáfora para sugerir que, quem quer obter algo, precisa subornar alguém). Essa engrenagem da corrupção não está neste ou naquele partido, mas no próprio sistema eleitoral, que permite que grandes empresas “comprem” mandatos para quem lhe convier. E o sistema se alastra das Câmaras de Vereadores de pequenos municípios, ao grande Congresso Nacional brasileiro. Um sistema, que deveria ser representativo, acaba-se reduzindo a mera troca de favores entre políticos e seus patrocinadores de campanha.
Só para ficar num exemplo: na última disputa presidencial, a empresa Andrade Gutierrez (uma das empreiteiras citadas na Operação Lava-Jato) doou R$ 21 milhões para a campanha de reeleição de Dilma (PT), e R$ 19 milhões para a campanha de Aécio Neves (PSDB). Já sabendo que a disputa presidencial se polarizaria entre PT e PSDB, as principais empreiteiras do país (como de praxe) decidiram acender uma vela para cada santo. Ganhando PT ou PSDB, seus interesses estariam garantidos. Ou alguém aí tem alguma outra explicação para justificar porque uma mesma empresa doaria valores parecidos para candidatos rivais? Não por acaso também que desde os anos 1990 a Andrade Gutierrez tornou-se uma das campeãs em contratos públicos com o governo federal e estaduais. O vício de origem é evidente. Só Gilmar Mendes parece não ver nada demais nisso.
(Justiça seja feita: partidos como os socialistas PSOL e PSTUnão permitem que seus candidatos aceitem doações de empresas- doações privadas, de pessoas físicas, são permitidas -, por entender que, ao se vincular a uma empresa, o primeiro grande passo na tentação de se corromper já estaria dado).
O fator Gilmar Mendes e o STF
Conhecido por destilar bravatas inflamadas contra o governo do PT (a que acusa de corrupto, com uma boa dose de razão), Gilmar Mendes é comumente celebrado por muitos como o único juiz independente e de postura realmente ilibada e séria a atuar no STF. Pura ingenuidade. Como Ministro, Mendes colocou seu mandato a serviço dos interesses daqueles que defendem a manutenção do atual sistema, que gera a corrupção e permite que empresas e políticos se tornem clientes e parceiros.
Refletindo a postura dos grupos políticos que reflete, Mendes sempre foi um árduo e conhecido defensor do sistema de doações privadas de campanha. Quando a votação sobre a ADIN 4.650 já registrava o placar favorável de 6×1 (e, portanto, a questão já estava praticamente resolvida no STF), Mendes lançou mão de um recurso legal para interromper a votação. Desde então, o ministro trava seu andamento.
O STF é constituído por um colegiado de 11 magistrados (juízes). As matérias que chegam até este tribunal são votadas por esse colegiado. O número ímpar (11 integrantes) é intencional: votações muito disputadas ou polêmicas não correm o risco de terminar empatadas.Se a ADIN 4.650 fosse aprovada em abril de 2014 por maioria simples (6×5), e a lei já poderia valerpara a campanha presidencial do ano passado. Mendes foi o único a votar contra a ADIN, e quando o placar já registrava 6×1 (ou seja, o STF já havia acolhido a proposta), o ministro se desesperou e interrompeu a votação pedindo “vistas” ao processo. No rito do STF, “vistas” é quando um juiz pede a interrupção da votação para um reexame mais detalhado sobre o assunto, onde, supostamente, poderá inclusive reavaliar seu voto e até modificá-lo. Neste caso, a votação é interrompida, e o juiz solicitante leva o dossiê para seu gabinete, onde, espera-se,o analise e o devolva em 30 dias, para o reinício da votação.
É pouco provável que Mendes tenha pedido “vistas” porque ainda tenha alguma dúvida sobre a matéria e queira modificar seu voto. Inclusive, já votou, e contra. Porém, mesmo que o placar já aponte a esmagadora vitória, a votação ficará suspensa enquanto Mendes não devolver o processo a casa, e consequentemente, a lei não pode ser aplicada.
Hoje, dia 2 de abril de 2014, sua manobra já completou um ano. O processo segue lá, parado em sua gaveta.
Para nós, brasileiros, resta comemorar este triste e inglório aniversário, engolindo mais um pedaço do bolo estragado com sabor de velha política oligárquica.
Só nos resta dizer: feliz aniversário, Ministro Gilmar Mendes!
Lucas Andrade de Lima
2 de abril de 2015 às 19:02
Raoni, excelente texto. Essa Ação Direta daria uma esperança, se aprovada, de finalmente atingirmos uma Eleição Democrática e Legítima.
Agora eu me confundi com as datas. O aniversário do engavetamento está ocorrendo agora, 02/04/2015?
Agradeço a atenção
Emilio Gonzalez
3 de abril de 2015 às 7:37
Perdão, Lucas. Por um erro na redação final, repeti a data (2 de abril de 2014). O processo dorme lá desde essa data. Ontem, 2 de abril de 2015, completou um ano. Obrigado pela observação e pelos comentários elogiosos. Abraços.