Uma antiga anedota narra uma estória curiosa: súditos famintos foram ao palácio real exigir comida. O rei assustou-se ao ver aquela turba nervosa adentrar ao recinto, e decidiu recebê-la a contragosto, tendo no entanto o devido cuidado de acomodá-la numa sala apertada, abafada e úmida. Passaram-se alguns instantes, e as janelas e portas foram fechadas, aumentando o calor insuportavelmente pesado e sufocante. Os manifestantes começaram a sentir muita sede, calor e cansaço, e protestaram. Eis que abre-se uma porta lateral, por onde funcionários do rei empurram alguns bodes fedorentos para dentro da sala. Misturados à multidão, os bodes começam a defecar e urinar no meio das pessoas, chifrando agressivamente quem tentava apartá-los. Mais algumas horas e a situação já era de caos. O rei finalmente apareceu, e perguntou, em tom paternal e solene: “O que eu posso fazer por vocês?” “Pois que tire esses bodes fedorentos daqui”, responderam. E o rei os atendeu prontamente, liberando a passagem para que todos pudessem voltar para suas casas, felizes e aliviados, sem nem mesmo lembrar-se dos motivos que os havia levado até ali.
***
O dia seguinte ao encerramento de uma greve tão longa e desgastante sempre dá aquela sensação de ressaca. Soube há pouco que a APP-Sindicato (que representa a categoria dos professores da rede pública estadual de ensino fundamental e médio) aceitou discutir o acordo oferecido pelo líder do governo na ALEP, que pode por fim à greve. Caso a assembleia da categoria o aprove, a greve dos professores da rede pública estadual (escolas de ensino fundamental e médio) chegará ao fim. Outras categorias (como o dos servidores das universidades estaduais) provavelmente permanecerão em greve. Revoltados (com alguma razão), estes servidores estão crucificando a APP, dizendo que os termos oferecidos pelo acordo consolida perdas ocorridas no processo de luta contra o desmonte da educação pública paranaense.
De fato, o acordo não é bom, pois embora reponha a inflação, o faz de forma escalonada e estendida, entre outubro deste ano, a 2017. Isso vindo de uma base que já votou, sem melindres, o confisco da previdência dos servidores paranaenses. Por outro lado, a questão para a APP é saber se a greve tem chance de se prolongar, por mais justa que seja (e é!). Como disse uma das lideranças, Profa. Marlei, ao comando de greve cabe aceitar e discutir as propostas sobre a mesa. A definição se a greve continua ou não caberá exclusivamente à base (professores), em assembleia que será convocada para este fim. A decisão final cabe à categoria. A APP é apenas um elo nesse processo.
***
A eventual saída da APP da greve provavelmente diminuirá em muito o poder de pressão dos demais sindicatos. O principal bode que estava na sala da sociedade e do governo pode finalmente ser retirado. O problema é que a greve já fez sangrar uma combalida e humilhada categoria de trabalhadores, em sua luta contra um governo que não teve escrúpulos sequer em despejar 1 milhão de reais em bombas e projéteis contra seus próprios servidores. Cada dia, diminui a adesão ao movimento paredista, e nas redes sociais dissemina-se suspeitas sobre a capacidade da APP em conduzir as negociações. Isso graças não à capacidade incansável e devotada das lideranças sindicais que estão enfrentando o rojão, mas principalmente ao conservadorismo evidente da sociedade paranaense – a mesma que reelegeu Beto Richa em 1° Turno cm votação esmagadora, não nos esqueçamos -, aliado à truculência do governo Beto Richa e sua maciça campanha na mídia paga (com recursos públicos) contra o movimento grevista. Como naquele outro dito popular: “vão-se os anéis; ficam-se os dedos”. A direção estadual da APP apostou alto ao bancar a greve, e conseguiu segurar à unha uma luta heroica e desproporcional. Agora, é hora de avaliar: talvez seja o momento de catar os cacos e tentar tirar aprendizados dessa mobilização. Isso apesar das balas de borrachas que ainda doem nas costas, e do confisco da previdência que irá doer no bolso…
***
Como na anedota oferecida acima, se tem uma coisa que o governo Beto Richa se especializou, foi na arte de colocar esses bichos fedorentos e agressivos na sala dos servidores públicos paranaenses.
Como começa essa estória da greve?
Em outubro de 2014, Beto Richa se reelegeu para mais um mandato à frente do Estado cantando loas de gloria as suas supostas realizações na educação paranaense. Até aquele momento, o governo havia assinado uma série de compromissos com os professores, o que evitou inclusive uma greve (que chegou a ser ensaiada naquele ano) dos professores da rede estadual. Porém, já reeleito, os bodes começaram a ser empurrados para dentro da sala. Às vésperas do recesso parlamentar de dezembro (e quando as escolas já estavam vazias pelo período de férias), Richa enviou à ALEP um conjunto de medidas que não apenas anulavam os acordos assinados anteriormente (2014), como também retirava direitos e conquistas obtidas negociações de governos anteriores, como a diminuição da hora-atividade, a extinção do quinquênio e o confisco do fundo de previdência. Outro bode entrou na sala em janeiro, e chifrou diretamente na barriga: o governo não pagou salários, décimo-terceiro, férias e acertos de servidores. Servidores públicos paranaenses começaram 2015 com as despensas e mesas vazias, devendo seu rim no cartão de crédito, cheque especial e crédito consignado. A situação se tornou humilhante.
Em fevereiro, com o reinicio do ano parlamentar, o bode urrou: a ALEP colocou na pauta de votações o confisco do fundo de previdência dos servidores, anunciado em dezembro de 2014. Nas escolas e universidades, professores decidiram nem reiniciar o ano letivo, empurrando o bode do governo também para a sala de pais de alunos.
Em abril, um dos bodes é retirado como parte do acordo para o fim da greve, e o governo decide pagar salários atrasados. Na sala, porém, permaneceu o bode maior, mais fedorento e agressivo de todos: o confisco da previdência. Os súditos, revoltados, foram ao Palácio tirar satisfação, mas viram o castelo (paradoxalmente chamado de “Casa do Povo”) cercado com enormes e agressivos crocodilos, dragões e catapultas que cuspiam fogo e enxofre contra a multidão. E quando nada mais poderia parecer pior, o governador anunciou que também não pagaria a data-base (reposição salarial constitucional, baseada no índice oficial de inflação, feita no dia 1° de maio de cada ano). Aos servidores não restava outra saída, senão a continuidade da greve.
Escrivães e corneteiros reais, com muitos reais do erário público no bolso, começaram a se vestir de bode e também chifrar a multidão: a mídia aliada ao governo reproduzia os discursos de Beto Richa, onde alegavam que os súditos estavam reclamando de barriga cheia. Tentando embarcar na onda do anti-petismo, Beto Richa chegou a atribuir a greve como motivada por um partido político (PT), dando ares de 3° turno à sua truculência e ações desastrosas à frente do Estado. Alguns seres-humanos com cérebro de bode acreditaram no governador, e passaram a defenestrar o justo movimento grevista. Agindo teatralmente, o governo ia à mídia apresentar uma proposta, e por trás, instruía sua base parlamentar (deputados) a negociarem uma outra proposta para confundir a sociedade e dar a impressão de que o governo queria negociar, e que a greve era resultado do radicalismo de professores (e não da intransigência do governo). Ambas propostas eram rechaçadas: a do governo cobria apenas um terço da inflação (8,17%), e ainda parcelava o minguado reajuste (3,45%) em três vezes; além disso, alterava a data-base de maio/2015, para janeiro de 2016, sem o pagamento dos retroativos. E o pagamento da nova data-base estaria condicionada ao caixa do governo (se o governo tivesse dinheiro). Considerada indecorosa, a proposta foi rejeitada pela APP e pelos demais sindicatos.
Já a “proposta” da base governista recompunha a inflação, mas condicionava o envio do acordo à ALEP ao fim da greve.
O que poucos sabem é que, do outro lado da moeda, os grevistas também sofriam insuportáveis pressões. Primeiro, de sua própria base, relativamente desunida; também da sociedade, cada vez mais propensa a acreditar na versão do governo divulgada pela grande mídia de que a greve era obra do PT (e não do desgoverno de Richa); e dos próprios poderes legislativo, executivo e judiciário, que tentaram o tempo todo deslegitimar e criminalizar a greve. Beto Richa jamais quis acordo: ao contrário, tentou o tempo todo judicializar a greve, tentando torna-la ilegal, e buscando infligir consequências drásticas à APP, as suas lideranças, e aos servidores em greve. Ameaçou o tempo todo com corte de salários, e através dos Núcleos pressionou diretores para dedurarem seus subordinados que estavam em greve, com ameaça de corte de ponto (falta) e demissão de PSSs (professores temporários). Contra a direção da APP, foi para a guerra suja divulgando com estardalhaço seus salários (num mês em que foram “engordados” com os vencimentos atrasados dos meses anteriores), e espalhando boatos infundados contra o movimento grevista e sua direção estadual, acusando-os de agirem motivados por razões político-partidárias (PT).
Quem analisa a greve apenas por seus motivos aparentes (reposição salarial constitucional) não consegue entender porque professores e servidores radicalizaram sua decisão em condicionar o fim da greve ao cumprimento integral da data-base. Analisar e entender a greve dos servidores paranaenses implica em perceber todo o processo anterior, iniciado ainda em 2014, e que teve em seu recheio mentiras, manobras, perda de direitos reais e humilhante violência física (como o massacre de 29 de abril). A greve jamais foi culpa dos servidores paranaenses, mas única e exclusivamente da intransigência de um governador que mente, provoca estelionato eleitoral, rouba aposentadoria e direitos básicos, e recusa a cumprir preceitos constitucionais elementares. A culpa da greve cabe única e exclusivamente ao senhor Carlos Alberto Richa e seus bodes a defecar na ALEP e em outras secretarias do Estado.
Caso se confirme o recuo e fim da greve dos professores estaduais, pode-se dizer que pelo menos a APP salvou sua honra ao obrigar o governo a cumprir uma parte da Constituição, comprometendo-se a pagar a data-base condizente com a inflação. Retirado este bode da data-base, professores e servidores provavelmente voltarão para casa – ou para a sala de aula -, esquecendo-se por um momento os reais motivos que os levaram inicialmente à greve.
Infelizmente, mesmo que saiam, outros bodes continuarão a feder na sala. E a raposa, a dilapidar o governo.
Marcelo de Oliveira Souza
4 de junho de 2015 às 18:09
Ótimo texto… Explêndida análise política… Obrigado por essa reflexão tão clara e verdadeira sobre a nossa atual situação política no Paraná. Deveria ser uma leitura obrigatória para toda a sociedade paranaense…
Marcelo de Oliveira Souza
4 de junho de 2015 às 18:13
Ps: por favor, leia-se “esplêndida”.
Mãe de aluno
4 de junho de 2015 às 20:53
Professor Emílio Gonzalez, parabéns. Um texto que provoca a racionalidade para a reflexão desse momento histórico que estamos vivendo. Excelente, peço permissão para utilizar com meus alunos.
Ivanete Semim
4 de junho de 2015 às 21:09
Uma valiosa reflexão que retrata a realidade.
Angela Cordazzo
4 de junho de 2015 às 21:45
Excelente texto, Reflexão! Mas creia-me nem por um momento conseguirei esquecer o que estamos passando. Parabéns pela análise!
Cecilia alice ossak
4 de junho de 2015 às 22:53
Que texto reflexivo, confesso!! Não sou a mesma pessoa após leitura e reflexão de suas sábias e oportunas colocações. Muito agradecida Professor Emilio
Vicente Beur
5 de junho de 2015 às 8:22
Disse tudo!
Isana
5 de junho de 2015 às 20:59
Eu que estava no dia 29 em Curitiba….me pergunto: -O que mais vira deste Desgoverno??!!
Maria
5 de junho de 2015 às 23:18
Mas o fim da estória não acaba aqui!! Faremos tudo e de tudo para lembrar nossos alunos que a maioria hoje com 13, 14 e 15 anos (futuros eleitores), assim como seus pais, a comunidade, a sociedade civil como um todo o que aconteceu no 1ª semestre de 2015, portanto, o rei que não quer ser rei durante apenas 4 anos e que cogita cargos mais elevados assim como seus aliados, NÃO conte com o voto desses súditos famintos, pois as informações que correrá pelos bairros, ruas, guetos…através famosas redes sociais superarão os chatos, fadigantes e embromáveis HORÁRIOS POLÍTICOS! O fim da estória será outro!!
naira
7 de junho de 2015 às 22:27
Ótima análise! Parabéns pela clarividência!