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Coluna do Emílio Gonzalez

Coluna do Emílio Gonzalez: 21 de abril, dia nacional da Mentira

tiradentesPor Emílio Gonzalez

Me “converti” ao pensamento crítico no começo do Ensino Médio, em Foz do Iguaçu. À época, como fã inconteste da banda Legião Urbana, propus (e também me encarreguei de organizar) uma pequena intervenção artística em minha escola com a música “Perfeição”. Para um jovem recém saído da adolescência, híbrido patrioticamente (filho de argentino com mãe brasileira descendente de italiano com índia, neto de árabe, e nascido do lado de lá da ponte, no lado paraguaio), ouvir frases como “Vamos celebrar nossa bandeira / nosso passado de absurdos gloriosos” era algo que me cortava como navalha. Desde a 3° ou 4° série primária, me recordo de minha raiva quando éramos levados ao pátio da escola para jurar a bandeira. A veneração acrítica a símbolos pátrios nacionais (brasileiros) parecia incoerente para uma cidade que respira o discurso da integração fronteiriça. Isso porque desde aqueles anos, eu já era completamente consciente que, entre nossos “passado(s) de absurdos gloriosos”, carregávamos a vergonha de ter destruído, de forma imperialista e covarde, o Paraguai, na guerra da Tríplice Aliança (1864-70). Tornava-se ainda mais tortuoso venerar a bandeira brasileira no pátio de uma escola que ficava a apenas algumas centenas de metros da barranca do rio que fazia a divisa com o lado paraguaio. Para mim, mais do que uma mera provocação, tratava-se de uma verdadeira insanidade.

NOTA: Há apenas pouco mais de uma centena de metros da barranca do rio, mas no centro da cidade, existem dois outros “monumentos” a lembrarem personagens fundamentais da tríplice Aliança que ajudaram a destruir o Paraguai: um Colégio Estadual (um dos mais antigos da cidade) que leva o nome de Bartolomeu Mitre; e uma Praça, batizada como Almirante Tamandaré. Mitre era presidente da Argentina e também o general que comandou as tropas da Tríplice Aliança (Brasil, Uruguai e Argentina) no campo de batalha nos primeiros anos da guerra, e Tamandaré foi o almirante da esquadra brasileira. Não existe nenhum outro monumento, nome de rua ou praça na cidade que homenageie qualquer chefe, general ou soldado caído nas fileiras do lado paraguaio. Isso porque Foz do Iguaçu pretende “integrar” e irmanar os países amigos, incluindo o Paraguai.

Com o tempo, percebi que todos os países, incluindo o meu querido Paraguai, também possui suas próprias bandeiras enroladas e manchadas de sangue e de absurdos gloriosos. A memória da guerra do Paraguai e o argumento da destruição da nação no século XIX foram amplamente utilizados pela violenta e longeva ditadura do general Alfredo Stroessner, que governou o país entre 1954 a 1989. Stroessner militarizou o país e criou uma ampla rede de espionagem e cagüetagem, sob o argumento de que era necessário defende-lo de inimigos externos. Com base nisso, Stroessner promoveu uma perseguição sistemática a todos aqueles que questionavam algo de seu governo, acusando-os de serem os tais inimigos da nação. Por outro lado, justificava a pobreza e os contrastes sociais que seu regime criou, dizendo que isso era resultado da guerra do Paraguai, e não da corrupção, dos desmandos e da concentração fundiária promovida durante sua ditadura. Enquanto Stroessner dizia querer defender o país do “perigo externo” (leia-se: comunismo), contraditoriamente entregava as férteis terras do pais à multinacionais do agronegócio, e entregou terras indígenas a agricultores brasileiros – os brasiguaios. Na macroestrutura, comprometeu a soberania econômica do Paraguai ao ajudar seus colegas de farda (os presidentes militares brasileiros) a construírem seu projeto megalômano de Itaipu, a um custo ambiental e social absurdo do qual até hoje não se tem uma noção exata, e que fez a alegria das empreiteiras brasileiras, cuja corrupção fez o custo final da obra saltar para uma dezena de vezes o valor orçado inicialmente.

Todos temos bandeiras enroladas em absurdos gloriosos.

No caso do Brasil, não me resta mais nenhuma dúvida: somos uma república inventada por nossas oligarquias e pelas forças conservadoras que desde 1500 se apinharam no poder, independente do sistema político e social que um dia tenha vigorado.

Tiradentes foi apenas mais uma vítima destas mesmas oligarquias, que, como de costume, primeiro o mataram, para depois, na maior desfaçatez e cara de pau, utilizá-lo como símbolo. A história da inconfidência mineira é bastante conhecida. Desde 1709 (quando se descobre ouro em Minas Gerais), e até meados do século XVIII, o Brasil havia produzido uma quantidade absurda de ouro e diamante, e fez a riqueza de nossas elites (aqui e em Portugal). Como sempre, a descoberta dessa riqueza não significou a melhoria da condição de vida e bem estar geral dos trabalhadores e pobres, principalmente dos negros escravizados. Ao contrário: a riqueza acentuou os contrastes sociais. Negros dobravam as costas sob o sol nos garimpos ou atolados em lama até o pescoço, para produzir riquezas que ficavam nas mãos de uma elite. Branca, naturalmente.

Porém, nas últimas décadas daquele século, a produção de minérios começou a declinar. Portugal, então metrópole e “proprietária” do Brasil, não esperava essa queda na produção, e já havia comprometido boa parte de seu orçamento público – incluindo o que ainda pretendia arrecadar no futuro – em dívidas externas e acordos militares com as novas potências europeias, especialmente Inglaterra. Ao perceber que a queda na produção iria afetar a arrecadação que incidia sobre ela, Portugal estabeleceu rigorosas metas de produtividade, impossíveis de serem alcançadas. Para fazer valer suas metas, ameaçou promover a “derrama” – uma cobrança compulsória de recursos dos produtores além do imposto já cobrado – até que fosse alcançada a meta de arrecadação de Portugal. Os mineradores – ricos e remediados – chiaram, e organizaram um levante contra a metrópole (Portugal). De repente, os ricos e a classe média da colônia descobriram a corrupção e os desmandos. De repente, trezentos anos depois de Cabral chegar por aqui, os setores ricos e médios “descobriram” que Portugal explorava o Brasil. De repente, quando mexeu com seu dinheiro, decidiram dar um “basta” e se rebelar contra a metrópole.

Tiradentes, um modesto funcionário público (Alferes), assumiu a frente da rebelião. Mas o movimento foi sufocado por “delatores” temerosos em perder outros privilégios. Tiradentes acabou preso e condenado como líder do movimento. Embora muitos inconfidentes (em sua maioria, ricos) tenham sido obrigados a partir por um tempo e a cumprir um exílio forçado, Tiradentes, o mais pobre de todos, foi o único a pagar com a própria vida e acabou morto e esquartejado em praça pública pelos soldados do reino de Portugal.

Depois de sua morte, não se falou mais no assunto. E a vida seguiu seu curso normal, sem qualquer sobressalto.

Depois vieram outros acontecimentos: a Família Real se muda para o Brasil; em 1815, a ex-colônia é elevada à categoria de “Reino”. Em 1822, proclama-se a independência do Brasil, mas por conveniência (e pelo medo de mobilizar o povo) das nossas elites o sistema se mantém intacto: ao invés de república, preserva-se a monarquia, que inclusive possuía laços sanguíneos com a casa real portuguesa; e ao invés de trabalho livre, mantém-se o sistema de escravidão negra. Tiradentes continua morto e enterrado. Ninguém fala a seu respeito.

Quando a independência brasileira se produziu em 1822, ela não guardou qualquer ligação com a rebelião dos inconfidentes. Ao contrário disso, nas Américas como um todo, a onda independentista alimentava-se dos ecos revolucionários vindos da França, que em 1789 tomou a bastilha, cortou a cabeça do seu rei, e instaurou a República. Na América Latina, “independência” significava revolução contra o sistema colonial e contra tudo aquilo que ele representava: escravidão, e monarquia. Por isso, no “enxoval” dos movimentos independentistas, vinha a rejeição ao sistema monárquico e à escravidão negra.

Na França, entre 1789 a 1794, movimentos populares (socialistas) conseguiram separar o Estado da religião, tirando privilégios da Igreja, e dessacralizando o rei. Os revolucionários franceses aboliram a escravidão negra em suas colônias, promoveram a reforma agrária e implantaram o sistema republicano com base no sufrágio universal (voto livre). Tudo para garantir a despersonalização do poder contra autoritarismos absolutistas, e também para abrir a participação do povo nas grandes decisões políticas. A partir de 1794, a nascente burguesia francesa aliou-se a antiga nobreza que havia sido destituída em 1789, e juntas, restauraram alguns privilégios, anulando inúmeras reformas que haviam sido feitas pelos socialistas. Para sufocar os grupos populares que ainda resistiam à guinada conservadora da revolução, a burguesia deu carta branca a um jovem general, Napoleão, deixando-o livre para massacrar quem quer que se opusesse à “ordem”. Napoleão “encerrou” à força a revolução na França, deixando a burguesia no poder, e saiu pela Europa derrubando governos absolutistas, tentando estabelecer um novo imperialismo no continente: o francês. Acabou isolado, derrotado e assassinado em 1815.

Aqui deste lado do atlântico, em 1822, a “surra” que o povo francês havia dado em suas elites nos primeiros anos da revolução francesa ainda doía no lombo de uma sobressaltada nobreza, e também da recém promovida burguesia. No Império português sediado no Brasil, “república” soava como um palavrão, fruto de gente “bárbara e inculta”. Após a derrota de Napoleão, a família real decidiu voltar a Portugal e deixou seu filho (Dom Pedro I) para administrar o reino unido do Brasil. Em Portugal, a burguesia passou a pressionar Dom João VI para que o Brasil fosse “recolonizado”, tal qual era no período pré-1808. Dessa tensão (e não das lutas populares, ou de qualquer espasmos raivoos de D. Pedro I) resultou nossa independência, pactuada entre as elites proprietárias, senhores de escravos, burgueses ricos e um ambicioso D. Pedro I. Para evitar as lutas populares que fustigavam as ex-colônias espanholas nas Américas, nossas elites decidiram realizar uma independência de gabinete, sem a participação do povo; e, por garantia, nada seria alterado. Nem o regime de escravidão, nem o regime de propriedade (latifúndio), e nem o sistema político.

Foi apenas em 1889, quando a palavra “república” já não possuía nenhuma conotação revolucionária, que nossas elites decidiram adotá-la. A monarquia foi derrubada num golpe militar (o primeiro de muitos que viriam ao longo dos 80 anos seguintes), e a república foi implantada com seus votos de cabresto, coronéis, eleições fraudadas e oligarquias que monopolizaram e se revezaram no poder durante as quatro décadas seguintes, até serem derrubadas por um grupo que acabaria instaurando uma nova ditadura (o “Estado Novo”).

Com se vê, ao contrário daquilo que ocorreu na França e em alguns países da América Latina, a república foi implantada no Brasil não como resultado das lutas populares, mas como necessidade de modernização do sistema político por parte das nossas elites. Em 1889, as elites criaram a república simplesmente porque queriam remover o único obstáculo direto ao poder – a figura do Monarca, no caso, D. Pedro II. A república foi fruto de um golpe militar, ou melhor; de uma “intervenção militar” (para usar uma palavra que está na moda!). Sendo D. Pedro II extremamente popular entre os pobres (especialmente entre os ex-escravos), e sendo a república reconhecidamente obra de uma elite rica, era necessário aos novos donos do poder legitimarem seu golpe, e apresentarem a república como algo que ela jamais foi: resultado das lutas populares, ou melhor dizendo: resultado de uma luta entre o opressor e o oprimido.

Daí a necessidade de se criar mártires populares, “próceres” que servissem de exemplo na luta contra as “injustiças” e “desmandos” do recém derrubado sistema monárquico. Foi então que nossas elites decidiram “inventar” a figura de Tiradentes.

(Embora não exista nenhuma gravura da época retratando o “verdadeiro” rosto de Tiradentes, as imagens produzidas posteriormente, já neste contexto de sacralização, tentam aproximá-lo da figura de Jesus Cristo: barbudo, roupas brancas, e feição de mártir imolado pelo bem da humanidade. Exemplo disso é o quadro do artista Pedro Américo, produzido em 1893, e que ilustra este artigo)

*********

NO BRASIL DE TIRADENTES, as lutas sociais e históricas travadas pelos oprimidos contra a tirania de seus governos e contra inimigos externos, jamais foram iniciativas de nossas elites; elites estas que, na verdade, sempre se aliaram aos poderosos e inimigos a roubarem e dilapidarem a nação. As lutas sociais foram sempre necessidades e contingências de um povo que decidiu, coletiva e espontaneamente, dar um “basta” numa situação de miséria e violência a qual estavam submetidos. Os reprimidos e massacrados de hoje tornar-se-ão os novos “mártires” a serem esculpidos pelos próprios filhos e netos daqueles que mandaram apertar a corda da forca e o gatilho contra seu povo. Mas farão esse reconhecimento “tardio” sem abdicar de um único centímetro do poder herdado com base na violência de seus antepassados. Os latifundiários e senhores de escravo aliados de Portugal que no passado mandaram executar Tiradentes, são os antepassados daqueles que, hoje, se alimentam de sua memoria de luta e resistência.

Tiradentes foi apenas mais uma destas vítimas inocentes e convenientes a serem produzidas pela História.

Tiradentes foi morto duas vezes: primeiro, por Portugal; e depois, quando foi apropriado e passou a legitimar (sem saber) o poder dos netos, bisnetos e descendentes daqueles que herdaram o poder contra o qual Tiradentes um dia lutou.

A História dá valorosas lições. Porém, a memória oficial – aquela produzida pelos dominantes -, omite a verdadeira origem das coisas, sendo constantemente falseada, moldada e ressignificada para alimentar e legitimar as relações de poder vividas no presente.

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