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Coluna do Emílio Gonzalez

Coluna do Emílio Gonzalez: Professor, uma profissão de risco

professor ferido

Tempos atrás, a revista Veja publicou uma matéria um tanto quanto perturbadora para nós, professores formados na rede pública de ensino fundamental e médio. Imbuída em sua fé cega na ideia da “meritocracia” como uma verdade absoluta e aplicável a qualquer situação, a revista destacava um fato provavelmente já percebido – e uma verdade bastante dolorida para muitos de nós: a maioria dos professores que hoje lecionam no sistema público de Ensino, quando estudantes de Ensino Fundamental e Médio, foram apenas alunos medíocres, ou mesmo com baixíssimo rendimento escolar.

(Já os melhores, os alunos mais estudiosos, naturalmente, acabaram indo parar em profissões mais “nobres”: médicos, engenheiros, dentistas, advogados, administradores… é a meritocracia em ação!)

Ou trocando em miúdos: os professores de hoje foram provavelmente os piores alunos do passado (dentre aqueles que chegaram a cursar o ensino superior, tenha-se claro. O buraco é sempre mais embaixo, e tudo pode piorar). Generalizando a regra, a meritocracia da Revista Veja apenas mostra que, no fundo, os professores grevistas do Paraná tem a escola porcaria e o salário horroroso que mereceram. Fim de papo.

Antes de seguir, admito: eu fui um destes alunos irregulares, que mal conseguia tirar nota para passar. Especialmente no final do Ensino Médio (malditas Química e Física!), quando passei de ano graças ao Conselho de Classe.

Hoje, aos 34, fiz mestrado, e atualmente curso doutorado em História na PUC/SP.

O tipo de constatação feita pela revista tem duas importantes funções ideológicas:

  • Colocar a culpa do fracasso na educação pública nas costas dos próprios professores. Afinal, se a escola vai de mal a pior, é porque os professores de hoje tampouco ajudaram a melhorá-la, quando alunos, num passado não muito distante. Além disso, que qualidade de ensino podemos esperar de uma escola onde os atuais mestres eram apenas alunos medíocres em sua época de estudantes?
  • Os baixos salários e a perda de direitos trabalhistas, afinal, são “castigos” mais do que merecidos. Na lógica da meritocracia, funcionário mal qualificado ou mal preparado não precisa ser recompensado.

Diante deste quadro, fica fácil perguntar: do que estão reclamando os professores do Paraná?

Antes de seguir, gostaria de pontuar que, em minha opinião, a meritocracia é uma farsa criada pelas elites para justificar o lugar de poder que há séculos ocupam de forma violenta e monopolista; posição de poder que também será ocupado por seus filhos, os “meninos de ouro”, futuros médicos, advogados, engenheiros e políticos que, na adolescência e juventude, se divertem ateando fogo em índios e mendigos, espancando empregadas domésticas confundidas com prostitutas, e estraçalhando o braço de trabalhadores na ciclovia, quando estes “meninos de ouro” voltam bêbados de festas na madrugada em seus carrões de luxo.

Por outro lado, para quem vem da periferia, a única chance de “topar” com a tal meritocracia seria através da escola; mas o ensino público é, hoje, uma máquina de moer sonhos e talentos. Sejam de alunos, sejam de professores.

***

Já vai longe o tempo em que o professor/professora era um dos membros mais respeitados e considerados da sociedade, recebido e tratado com respeito por pais e autoridades. Dizia-se, no interior do país, que casar-se com uma professora era “dar o golpe do baú”, tamanho era o status social e estabilidade econômica que a profissão oferecia.

Evidentemente, não se trata de incorrer num idealismo pueril, de achar que as coisas eram melhores no passado, já que aquela sociedade não era menos injusta do que a atual. Porém, pelo menos, tem se a impressão que a educação era tratada com mais seriedade pelas autoridades e pela sociedade. E não era para menos: a escola formava as elites. Pelos bancos escolares passavam os futuros prefeitos, deputados, presidentes, advogados e médicos. Hoje, sentado no banco das escolas públicas, estão os futuros peões, presidiários, estivadores, empregadas domésticas, pedreiros, motoristas, catadores de recicláveis… e alguns futuros professores da rede pública de ensino, como bem mapeou a revista Veja.

Desde a imagem clássica da professorinha recebendo flores e maçãs de seus alunos, muita coisa mudou, e um enorme abismo se abriu sobre nossos pés. Hoje, os professores estão querendo desistir da profissão. Nessa semana, o filósofo e professor Vladmir Safatle escreveu um sugestivo artigo na Folha de São Paulo, com o provocativo título “Não seja Professor”. Na mesma semana, no interior de São Paulo (Rio Claro), um professor de Química da rede pública foi agredido e teve seu nariz quebrado por um bloco de concreto atirado por um aluno. Após a agressão, o professor decidiu: irá desistir da profissão.

O que esperar das novas gerações, no que diz respeito a manutenção da escola pública? Como pretender que os estudantes de hoje desejem ser professores dessas escolas – de suas escolas – no futuro, após verem seus mestres serem surrados covarde e impunemente por homens de farda semi-alfabetizados, a serviço do governo do Estado do Paraná?

As feridas deixadas no corpo pelas bombas do dia 29 de abril provavelmente irão se cicatrizar. Já o estrago produzido na auto-estima das gerações futuras, não.

A sensação é de estarmos andado em uma terra arrasada. Fazemos um esforço tentando acreditar que essa violência vinda da sociedade e do próprio Estado contra seus professores são apenas manifestações isoladas e casuais, mas não são. As imagens da brutal repressão promovida pelo governador Beto Richa no dia 29 de abril se juntam a outras, ocorridas em diversos Estados da federação (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Brasília, Goiás). Elas não deixam dúvidas: ser professor no Brasil é uma profissão de risco.

Mas ao contrário do que possa parecer, a crise na educação pública brasileira não é resultado da meritocracia – ou, melhor dizendo, da falta dela. O desmonte da escola pública e da profissão de “professor” é resultado de um processo histórico recente, que se confunde com a própria trajetória das lutas sociais empreendidas pela classe trabalhadora no Brasil.

Que história é essa, afinal?

Vamos a origem. A imagem clássica da professorinha cotejada pela elite, pelo padre e pelo prefeito da cidade só existiu quando a escola ainda era privilégio exclusivo dos ricos. Ela ainda permanecia mesmo após a década de 1930, quando o governo Vargas (1930-45) instituiu o ensino primário (1° a 4° série) público, mas obrigatório. Imbuídas de uma visão preconceituosa sobre o seu próprio povo, as elites diziam que o povo não poderia jamais governar-se a si próprios. Sendo a escola um dos atalhos para se chegar (e exercer) o poder, ela acabava ficando reservada aos filhos dessa elite. Aos trabalhadores, bastava aprender o básico, necessário para ler e interpretar manuais, apertar parafusos, e prestar obediência ao governo: bastava aprender a ler e escrever, decorar nomes de governantes e chefes militares, capitais de Estados brasileiros, cantar o hino nacional, jurar a bandeira e os símbolos pátrios, e aprender a resolver operações básicas de matemática (adição, subtração, divisão e multiplicação).

Quem quisesse seguir estudando deveria pagar do próprio bolso (algo fora de cogitação para os trabalhadores), ou conseguir uma das parcas vagas em escolas técnicas profissionalizantes, seminários religiosos, escolas militares ou escolas vocacionais do gênero. Os filhos da elite iam até a Europa complementar seus estudos, de onde retornavam “doutores” e assim, prontos para assumir o mando político do Estado e do País.

Os trabalhadores logo se aperceberam dessa perversa dialética entre a Escola e poder. Entre o final dos anos 1950 e início da década de 1960, em meio ao amplo processo de mobilização social, já discutiam importantes reformas (econômica, agrária, educacional, etc) que colocavam a ampliação da educação na ordem do dia. Animados pelas teses de educadores como Paulo Freire, os trabalhadores pressionavam governos para a abertura e ampliação da escola pública, incluindo a alfabetização de jovens e adultos. A escola, como monopólio exclusivo das elites, agora corria sério risco.

Com muita luta e pressão, os trabalhadores afinal conseguiram abrir a escola a cotoveladas. A partir deste momento, a educação se tornou um “problema” para os governantes; não porque estes estivessem preocupados em ampliar e reforçar o papel da escola enquanto instituição possibilitadora e transformadora da realidade social. Ao contrário, tornava-se imperativo desmontá-la e esvaziá-la de sua capacidade crítica e transformadora, de modo que, uma vez aberta acessível aos trabalhadores, ela já não fosse mais capaz de alterar radicalmente a ordem social e os poderes constituídos.

A escola pública, assim esvaziada e sucateada, foi se definindo cada vez mais como destino exclusivo dos trabalhadores e seus filhos, enquanto os filhos da elite migravam para escolas privadas, só retornando ao sistema público de Ensino para cursar o ensino superior (algo até recentemente também fechado aos filhos da classe trabalhadora).

Nessa lógica, o regime militar (1964-85) ampliou o ensino público até a 8° série (antiga reivindicação dos trabalhadores); mas ao mesmo tempo, sucateou a escola e tudo a ela ligado. A profissão de professor se deteriorou, tornando-se ela própria vítima de um profundo processo de precarização das condições de vida e trabalho enfrentadas pela classe trabalhadora naquele período

Portanto, não foi a falta de interesse ou despreparo e incapacidade de professores e alunos “medíocres” que transformou o ensino público de nível fundamental e médio nessa coisa lastimável e ineficaz que temos hoje. Há décadas o desmonte da escola e a proletarização da carreira de professor vem arrancando aquela aura “mística” de intocabilidade e respeito que gozavam no passado. Quando falamos na figura do “professor”, já não é mais a “professorinha” recatada e feliz que aparece nas câmeras de TV, e sim trabalhadores ensanguentados, pessoas simples, que tem filhos e família para sustentar, e que a cada ano precisam mendigar o reajuste compatível com a inflação, e o cumprimento de acordos salariais e previdenciários anteriores para pelo menos poder pagar aluguel e comprar remédio e comida. Não é mais a “professorinha” casadoira que simboliza a escola de nossos filhos, mas professores de semblante cansado e triste, quase desistindo da profissão, tendo que se tratar da diabetes, pressão alta, depressão e outras doenças adquiridas com o tempo; que usam roupa jeans surrada, transporte público, comem arroz e feijão, e que agora (no caso do Paraná) também apanham como qualquer marginal ou bandido nas mãos da polícia do Estado.

Ao invés de flores e maçãs, bombas de gás, balas de borracha e blocos de concreto os recepcionam. Ao invés de elogios, ameaças de dispensa e corte de ponto, por parte de governadores, e ameaças físicas por parte de alunos e pais de alunos – estes últimos, também setores marginalizados pelo próprio Estado, mas que preferem “descontar” sua raiva no elo mais próximo que ele conhece entre a sociedade e o Estado: o professor, a quem considera um “privilegiado”, e a Escola como uma instituição estatal que deve ser vandalizada e destruída.

Professores que, apesar disso, apesar de tudo, com orgulho ferido, com o rosto machucado pelas bombas e agressões, e com o corpo e a alma cansada, ainda acreditam e lutam para que a mudança social venha através do conhecimento e do ensino. Como na canção de Geraldo Vandré, ainda acreditam nas flores e nos livros vencendo os canhões.

1 Comentário

1 Comentário

  1. Rogério Tonet

    8 de maio de 2015 às 9:15

    Caramba…

    Parabéns pelo relato… eu também sou professor (apesar de só atuar no ens. superior) sei bem como é essa coisa toda…

    Força aí mermão Gonzales!

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